Talvez você se considere um homem “cuidadoso”: trabalha, cuida da família, faz exames de rotina de vez em quando e, na maior parte do tempo, sente que está tudo sob controle. Na relação estável, a camisinha foi deixada para trás há anos — afinal, existe confiança, intimidade, rotina.
Mas, fora desse relacionamento, em alguma festa, viagem ou encontro “sem importância”, o preservativo nem sempre aparece com a mesma firmeza. E, quando aparece, às vezes é deixado de lado no impulso do momento.
Essa divisão entre a vida “oficial” e as escapadas discretas é muito mais comum do que se admite em voz alta. E é justamente aqui que mora um dos grandes paradoxos da epidemia de HIV entre heterossexuais: muitas mulheres são infectadas dentro de relações estáveis, por parceiros que se consideram “de família” — mas que, na prática, assumem riscos silenciosos fora da relação.
O Dia Mundial de Luta contra a AIDS, lembrado em 1º de dezembro desde 1988, foi criado para manter esse tema vivo na conversa pública: lembrar quem morreu, apoiar quem vive com HIV e chamar atenção para o que ainda precisa mudar, inclusive na forma como homens se relacionam com o próprio desejo, com o prazer e com a responsabilidade. No Brasil, isso se soma ao Dezembro Vermelho, que mobiliza campanhas de testagem, distribuição de preservativos e ações educativas ao longo de todo o mês.
Mais do que uma data no calendário, essa é uma oportunidade de fazer uma pergunta direta: Como o comportamento dos homens, especialmente em relações estáveis, tem impacto na vulnerabilidade das mulheres heterossexuais ao HIV?
👩❤️👨 O retrato atual da epidemia entre heterossexuais
Dados epidemiológicos recentes mostram que a transmissão sexual entre heterossexuais é a principal forma de infecção pelo HIV no Brasil, respondendo por cerca de metade dos casos notificados (Dourado et al, 2025). A epidemia ainda apresenta predomínio masculino, com aproximadamente dois terços dos casos em homens, especialmente na faixa de 30 a 39 anos. A razão entre homens e mulheres gira em torno de 2,9, indicando maior exposição masculina a comportamentos de risco.
Ao mesmo tempo, o crescimento histórico da infecção entre mulheres foi tão expressivo que se passou a falar em feminização da epidemia: elas se infectam cada vez mais não porque “procuram risco”, mas porque muitas vezes estão em relações nas quais confiam no parceiro e, por isso, deixam de usar camisinha. Estudos brasileiros mostram que cerca de 70% das mulheres vivendo com HIV e que tinham parceiro fixo à época da infecção relatam ter sido infectadas justamente pelo companheiro estável (Dourado et al, 2025; Paula et al, 2024).
Quando se olha para esses números com calma, uma coisa fica clara: não dá para falar de prevenção apenas reforçando que “as mulheres precisam se cuidar mais” — sem perguntar o que os homens estão fazendo com essa confiança que recebem.
💍 O paradoxo da confiança conjugal
Na teoria, o relacionamento estável — casamento, união estável, namoro de longa duração — deveria ser o lugar de maior proteção. Na prática, muitos dados mostram o contrário.
Pesquisas brasileiras indicam que a maioria das mulheres em relações estáveis não faz uso contínuo do preservativo, justamente por estar com parceiro fixo. Mesmo assim, muitas delas admitem não confiar totalmente no comportamento sexual do companheiro (Sousa, 2008). Ou seja: não é que “elas não saibam do risco”; é que não têm força ou espaço para transformar essa desconfiança em negociação concreta.
Entre mulheres vivendo com HIV, estudos apontam que mais de 60% nunca usavam camisinha no período em que provavelmente se infectaram, enquanto apenas 32,3% o usavam às vezes. Quando comparadas a mulheres não infectadas, os percentuais de “nunca usava” e “usava ocasionalmente” são significativamente mais altos entre aquelas que vivem com HIV (Santos et al, 2009).
Outro dado importante aparece entre gestantes adolescentes e jovens com parceiros fixos: cerca de 90% relatam não usar preservativo de forma habitual, justificando essa escolha pela confiança no companheiro ou pela recusa dele em usar camisinha (Costa et al, 2011).
Em resumo:
o preservativo sai de cena quando a relação é definida como “séria”;
a confiança na fidelidade masculina muitas vezes não corresponde à realidade;
e quem paga essa conta, muitas vezes, é a saúde da mulher.
♂️ Masculinidade, infidelidade e a recusa do preservativo
Para entender por que isso acontece, não basta olhar apenas para decisões individuais. É preciso considerar como homens são socializados.
Diversos estudos sobre masculinidade e vulnerabilidade ao HIV (Guerriero et al., 2002) mostram que homens são educados para:
sentir-se fortes e quase imunes a doenças;
valorizar a impulsividade e a disposição para correr riscos;
acreditar que têm “mais necessidade de sexo” do que as mulheres, como se o desejo fosse incontrolável;
entender a infidelidade masculina como algo quase natural, enquanto a feminina é vista como falha moral grave do parceiro.
Nesse roteiro, o homem “de verdade” é aquele que não recusa sexo, acumula histórias, “vive experiências” — e a camisinha se torna um detalhe negociável, muitas vezes deixado de lado no calor do momento. Em muitas relações, é ele quem dá a palavra final: vai usar preservativo ou não.
Quando esse mesmo homem volta para casa e transa sem camisinha com sua parceira estável, a sensação subjetiva é de que está tudo bem: “aqui é seguro, aqui é família”.
Mas o corpo da parceira recebe, sem escolha nem informação, as consequências das decisões que ele tomou fora dali.
Seria simples — e injusto — dizer que “basta a mulher exigir camisinha”.
Na vida real, a negociação do preservativo é atravessada por relações de poder e dependência. Muitas mulheres: têm medo de serem acusadas de desconfiança ou infidelidade se pedirem o uso do preservativo; dependem financeiramente, emocionalmente ou socialmente da relação, o que dificulta pôr limites; e aprenderam, desde cedo, que “boa esposa” ou “boa namorada” é aquela que confia e não cria conflito.
Os dados de pesquisa mostram que, em grande parte dos casos, a recusa masculina ao uso de camisinha prevalece, e a mulher acaba cedendo, ainda que tenha medo ou desconfiança (Oliveira & Paiva, 2007; Santos et al., 2009). Quando isso acontece, é inadequado tratar a infecção como se fosse resultado exclusivo da “irresponsabilidade dela”.
Falar em vulnerabilidade feminina ao HIV significa reconhecer que a prevenção não depende apenas da “vontade individual” de cada mulher, mas também da responsabilidade (ou irresponsabilidade) masculina, das normas de gênero e dos acordos — explícitos ou não — que estruturam a relação.
🤔O que significa responsabilidade masculina na prevenção?
Se você é homem e está lendo este texto, responsabilidade aqui não é sinônimo de culpa eterna, nem de moralismo em cima da sexualidade.
Responsabilidade masculina na prevenção significa:
Olhar para a própria prática sexual com honestidade: com quem você se relaciona, em quais situações abre mão da camisinha, quais riscos assume sem contar à parceira.
Entender que o risco não é só seu: cada relação desprotegida fora do relacionamento pode se transformar, depois, em risco direto para quem confia em você em casa.
Assumir o protagonismo na proteção, e não deixar tudo nas mãos da parceira — especialmente se é você quem decide quando usar ou não preservativo.
Na prática, essa responsabilidade se traduz em algumas atitudes concretas (Guerriero et al., 2002; Kalckmann et al., 2009; Santos et al, 2009):
Uso consistente de preservativo
Usar camisinha nas relações casuais não é “coisa de adolescente assustado”; é um ato básico de cuidado. Na relação estável, se houve traição ou situação de risco, insistir em sexo sem preservativo, sem testagem prévia, é expor a parceira a um risco que ela não escolheu correr.
Testagem regular para HIV e outras ISTs
Incluir o teste de HIV e outras infecções sexualmente transmissíveis na sua rotina de saúde, sem esperar “ter sintomas” (porque muitas vezes não há sintomas claros). Isso vale tanto para homens solteiros quanto para aqueles em relações estáveis.
Diálogo honesto com a parceira
Falar sobre proteção, possíveis exposições de risco, acordos de fidelidade (ou não), e sobre o que cada um considera aceitável ou inegociável. Não é fácil, mas é infinitamente mais responsável do que manter segredos que colocam a saúde do outro em jogo.
Conhecimento e uso da prevenção combinada
Além da camisinha, existem estratégias como PrEP (profilaxia pré-exposição) e PEP (profilaxia pós-exposição) que podem ser discutidas com profissionais de saúde, especialmente em situações de maior risco ou em casais sorodiferentes. Isso também faz parte da responsabilidade masculina na prevenção.
🧍 Ser homem, amar alguém e não fechar os olhos
No fim das contas, a questão volta sempre para o mesmo ponto: o que você faz com a confiança que alguém deposita em você?
Muitas mulheres em relações estáveis são infectadas pelo próprio parceiro. Muitas sabiam, em algum nível, que algo não estava bem, mas não tinham espaço para negociar, para exigir camisinha, para questionar. E muitos homens continuam se vendo como “bons companheiros”, mesmo quando não conseguem encarar o fato de que suas escolhas sexuais colocam o corpo do outro em risco.
Assumir responsabilidade não significa carregar culpa paralisante, mas aceitar que ser adulto — e ser homem — envolve cuidar também de quem está ao seu lado. Isso inclui:
ser franco sobre onde você esteve e com quem;
não usar a confiança da parceira como escudo para esconder comportamentos de risco;
decidir que seu prazer não vai custar a saúde de quem confia em você.
Se existe uma mensagem que o Dia Mundial de Luta contra a AIDS pode trazer para os homens em relações heterossexuais, talvez seja esta:
Quando um homem escolhe se proteger e proteger sua parceira, ele não está sendo “menos homem” — está sendo adulto o suficiente para entender que seu prazer não pode custar a saúde de quem confia nele.
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📚 Referências e sugestões de leitura:
Costa, M. C. O., Santos, B. C., Souza, K. E. P. de, Cruz, N. L. de A., Santana, M. C., & Nascimento, O. C. do. (2011). HIV/AIDS e sífilis entre gestantes adolescentes e adultas jovens: fatores de exposição e risco dos atendimentos de um programa de DST/HIV/AIDS na rede pública de saúde/SUS, Bahia, Brasil. Revista Baiana de Saúde Pública, 35, 179–195. https://rbsp.sesab.ba.gov.br/index.php/rbsp/article/download/155/150/158
Dourado A. M. L., Sousa M. S. de, Brandão T. de O., Silva R. da L. S., Barbosa L. D. S., Santos F. A. da C. dos, Rocha D. de M., Silva L. L. W. V. da, Rodrigues A. A., & SousaL. R. M. (2025). Perfil epidemiológico de casos de AIDS no Brasil entre 1980 a 2024: um estudo transversal retrospectivo. Revista Eletrônica Acervo Saúde, 25(10), e21728. https://doi.org/10.25248/reas.e21728.2025
Guerriero, I., Ayres, J. R. C., & Hearst, N. (2002). Masculinidade e vulnerabilidade ao HIV de homens heterossexuais, São Paulo, SP. Revista de Saúde Pública, 36(4 suppl), 50–60. https://doi.org/10.1590/s0034-89102002000500008
Kalckmann, S., Farias, N., & Carvalheiro, J. da R. (2009). Avaliação da continuidade de uso do preservativo feminino em usuárias do Sistema Único de Saúde em unidades da região metropolitana de São Paulo, Brasil. Revista Brasileira de Epidemiologia, 12, 132–143. https://doi.org/10.1590/S1415-790X2009000200004
Marin, A. F., Yonegura, W. H. T., Bessa, B. B., dos Santos, C. D., & Bessa, V. B. (2023). Avaliação da Profilaxia Pré-Exposição (PrEP) de risco à infecção pelo HIV entre casais sorodiscordantes em um Centro de Referência do Oeste do Paraná. Brazilian Journal of Health Review, 6(3), 12448–12465. https://doi.org/10.34119/bjhrv6n3-316
Paula, H. S. de, Sena, L. P. de, & Pena, G. A. (2024). Perfil epidemiológico da AIDS/HIV em Minas Gerais entre 2013 e 2024. Brazilian Journal of Health Review, 7(10), e74845. https://doi.org/10.34119/bjhrv7n10-022
Oliveira, J. F. de, & Paiva, M. S. (2007). Vulnerabilidade de mulheres usuárias de drogas ao HIV/AIDS em uma perspectiva de gênero. Escola Anna Nery, 11(4), 625–631. https://doi.org/10.1590/s1414-81452007000400011
Santos, N. J. S., Barbosa, R. M., Pinho, A. A., Villela, W. V., Aidar, T., & Filipe, E. M. V. (2009). Contextos de vulnerabilidade para o HIV entre mulheres brasileiras. Cadernos de Saúde Pública, 25, s321–s333. https://doi.org/10.1590/S0102-311X2009001400014
Sousa, M. da C. P. de, Espírito Santo, A. C. G. do, & Motta, S. K. A. (2008). Gênero, vulnerabilidade das mulheres ao HIV/Aids e ações de prevenção em bairro da periferia de Teresina, Piauí, Brasil. Saúde E Sociedade, 17(2), 58–68. https://doi.org/10.1590/s0104-12902008000200007