Especial Setembro Amarelo
Quantas vezes você já ouviu — ou disse a si mesmo — “aguenta firme”? À primeira vista, soa como incentivo. Mas, por trás, carrega uma ordem silenciosa: suportar em silêncio, não pedir ajuda, provar força a qualquer custo. Esse padrão, repetido geração após geração, se tornou um dos pilares daquilo que chamamos de masculinidade. Só que, longe de ser inofensivo, ele cobra um preço alto: ensina meninos a engolir o choro, a sentir vergonha da fragilidade e a acreditar que cuidar de si é coisa “de mulher” — portanto, proibida. O resultado é um acúmulo de silêncios que pesa sobre a saúde psicológica de tantos homens.
É nesse cenário que o Setembro Amarelo ganha importância. Mais que uma campanha, ele funciona como lembrete coletivo de que precisamos falar sobre o que costuma ser escondido. Todos os anos, esse mês nos convida a olhar para o suicídio e para o sofrimento que o antecede. E quando pensamos nisso, torna-se impossível ignorar a realidade masculina: as mulheres tentam mais vezes contra a própria vida, mas os homens morrem mais, geralmente porque recorrem a métodos mais letais (Lepidus et al., 2021; Ministério da Saúde, 2024b). Esses números não são obra do acaso — refletem uma cultura que pune a vulnerabilidade.
Precisamos encarar o problema na raiz: a forma como ensinamos os homens a lidar com a dor.
🙊 Estigma, socialização e silêncio
Desde cedo, meninos aprendem que demonstrar fragilidade é motivo de desvalorização. A masculinidade tradicional foi moldada em torno da imagem do guerreiro e do provedor. Como aponta Moore (2015), a associação entre homens e violência, e entre mulheres e vitimização, invisibiliza a fragilidade masculina e reforça práticas que afastam os homens do cuidado. Assim, admitir sofrimento significa perder status — e a saída mais comum passa a ser o silêncio.
Na prática clínica, vemos isso em funcionamento. Do ponto de vista comportamental, punições não eliminam sentimentos, apenas moldam respostas de esquiva ou mais emotivas. Ou seja: quando um menino é punido por chorar, ele não “deixa de sentir”; apenas aprende a esconder. Esse mecanismo explica por que, na vida adulta, tantos homens resistem a buscar ajuda, mesmo em situações graves.
O preço é alto: ao evitarem serviços de saúde, ficam mais expostos a estratégias de enfrentamento arriscadas — uso abusivo de álcool e drogas, violência ou dedicação compulsiva ao trabalho (Macedo et al., 2010; Lepidus et al., 2021). Podem até aliviar por instantes, mas no longo prazo aumentam o risco de adoecimento e morte. Nesse sentido, o “aguenta firme” deixa de ser incentivo e se converte em risco concreto.
💸 Autossuficiência e determinantes sociais
Outra peça desse quebra-cabeça é a ideia de autossuficiência. Como mostram Gomes, Nascimento e Araújo (2007), muitos homens constroem sua identidade em oposição ao que consideram “feminino”. Se às mulheres cabe o cuidado, a eles restaria a dureza. O problema é que, na prática, essa lógica conduz à solidão.
A saúde psicológica masculina, portanto, não pode ser entendida apenas como um quadro clínico individual. O sofrimento que tantos homens carregam também nasce de fatores concretos: desemprego que mina a autoestima, desigualdade que limita perspectivas, violência nos territórios, racismo, homofobia, ausência de redes de apoio. Como lembra Schuina (2024), reduzir essa dor a uma “doença individual” ou a “falta de força” não só simplifica demais como perpetua injustiças — responsabiliza o indivíduo, enquanto as condições que o adoecem permanecem intocadas.
Esse reducionismo tem efeitos concretos: homens continuam se culpando por não corresponderem ao ideal de invulnerabilidade; profissionais de saúde ficam sobrecarregados tentando tratar sintomas que nascem de contextos sociais; e a sociedade mantém intactas as estruturas que produzem sofrimento. Reconhecer esses determinantes é o primeiro passo para ampliar o cuidado: não só clínico, mas também social, cultural e político.
🫂 Redes de apoio e novas masculinidades
Romper esse ciclo não é tarefa individual. É preciso fortalecer redes de apoio — família, amigos, comunidade, profissionais de saúde — que encorajem os homens a buscar ajuda (Lepidus et al., 2021; Ministério da Saúde, 2024a; 2024b). Também é essencial questionar o modelo de masculinidade hegemônica descrito por Connell e Messerschmidt (2013), que coloca a dureza como padrão.
Isso não significa negar a masculinidade, mas ampliá-la. Cuidado e vulnerabilidade também podem ser valores legítimos. Moore (2015) destaca que desvincular masculinidade e violência é um passo fundamental para novas práticas. Reconhecer que fragilidade faz parte da experiência humana abre espaço para um outro repertório.
🟡 Setembro Amarelo: símbolos e limites
O Setembro Amarelo se consolidou como a maior mobilização sobre prevenção do suicídio no Brasil e no mundo. O laço amarelo, os prédios iluminados, as palestras e campanhas cumprem o papel de quebrar tabus e abrir diálogo. Mas é preciso reconhecer seus limites.
Muitas vezes, o discurso se perde em simplificações ou frases genéricas que pouco ajudam. Há também a romantização do sofrimento, a invisibilidade de grupos diversos, a ausência de espaços para sobreviventes e enlutados e a falta de continuidade das ações.
Se queremos que a campanha seja mais que simbólica, precisamos repensá-la. Isso inclui:
divulgar com clareza os caminhos de acesso a serviços como CAPS, UBS e CVV (188);
investir em formação continuada para profissionais;
criar espaços reais de escuta;
considerar recortes de raça, gênero, classe e sexualidade;
garantir que o cuidado não se limite a setembro, mas dure o ano todo.
🚶 Para seguir adiante
O estigma em torno da saúde psicológica masculina nasce de práticas culturais que punem a vulnerabilidade. O “aguenta firme”, repetido e internalizado, funciona como dispositivo de controle: limita a expressão, impede o pedido de ajuda e expõe os homens a riscos maiores de violência, suicídio e morte precoce (Moore, 2015; Lepidus et al., 2021).
Repensar o Setembro Amarelo não é detalhe estético, é questão de sobrevivência. De nada adianta iluminar prédios se não estivermos dispostos a enfrentar o tabu com escuta real, a conectar homens aos serviços que já existem e a mostrar que pedir ajuda não diminui a masculinidade — ao contrário, amplia as possibilidades de vida.
Mais do que nunca, precisamos insistir: a saúde psicológica não se constrói apenas no consultório, mas também nas relações, nas comunidades e nos contextos que moldam nossa vida. Criar espaços de acolhimento, ampliar o acesso a serviços, investir em formação de profissionais e considerar recortes sociais não são tarefas opcionais: são caminhos fundamentais para que o cuidado seja contínuo e verdadeiro.
E a pergunta que permanece é simples e difícil: até quando o “aguenta firme” vai ditar os modos de ser homem? O que poderia mudar se, em vez de resistir sozinho, cada homem pudesse se permitir ser cuidado? A resposta não cabe apenas às campanhas, mas às nossas escolhas de todos os dias. Porque transformar o “aguenta firme” em “você não precisa passar por isso sozinho” é mais que um gesto individual: é um compromisso coletivo com a vida.
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CVV – Centro de Valorização da Vida
Telefone: 188 (ligação gratuita, 24h por dia)
Chat online: www.cvv.org.br
Atendimento sigiloso e voluntário para quem precisa conversar.
SAMU – Serviço de Atendimento Móvel de Urgência
Telefone: 192 (emergência médica)
Aciona socorro imediato em risco iminente de vida.
Corpo de Bombeiros
Telefone: 193
Também atende situações de urgência e resgate.
Unidades de Pronto Atendimento (UPA) ou hospitais gerais
Atendimento presencial em crises agudas de saúde mental.
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Referências e sugestões de leitura:
CONNELL, R. W.; MESSERSCHMIDT, J. W. Masculinidade hegemônica: repensando o conceito. Revista Estudos Feministas, v. 21, n. 1, p. 241-282, 2013.
GOMES, R.; NASCIMENTO, E. F.; ARAÚJO, F. C. Por que os homens buscam menos os serviços de saúde do que as mulheres? Cadernos de Saúde Pública, v. 23, n. 3, p. 565-574, 2007.
LEPIDUS, G. D. S.; ANTUNES JÚNIOR, R. J. S.; FERREIRA, J. M. N. Multifatores que prejudicam o autocuidado masculino na prevenção da saúde física e mental: um olhar da psicologia. Revista de Psicologia, v. 6, n. 3, 2021.
MACEDO, M. M. K. et al. Atenção integral à saúde masculina: a busca por atendimento psicológico em uma clínica-escola. Psicologia: teoria e prática, v. 12, n. 1, p. 154-170, 2010.
Ministério da Saúde. (2024a). Prevenção de suicídio. (Série saúde psicológica e Atenção Psicossocial em Desastres, Vol. 7, 1ª ed.). Ministério da Saúde. https://vigiar-esp.saude.gov.br/local/pages/?id=9
Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente. (2024b, 6 de fevereiro). Panorama dos suicídios e lesões autoprovocadas no Brasil de 2010 a 2021 (Boletim Epidemiológico, Vol. 55, nº 4). Ministério da Saúde. https://www.gov.br/saude/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/boletins/epidemiologicos/edicoes/2024/boletim-epidemiologico-volume-55-no-04.pdf
MOORE, R. A. Violência e gênero: vulnerabilidade masculina. Dissertação de Mestrado. Universidade de Brasília, 2015.
Organização Mundial da Saúde, & Organização Pan-Americana da Saúde. (2024b). Viver a vida: Guia de implementação para a prevenção do suicídio nos países. OPAS/OMS.
Schuina, L. (2024, 12 de setembro). Especialistas em saúde psicológica fazem críticas ao Setembro Amarelo. Século Diário. https://www.seculodiario.com.br/saude/especialistas-em-saude-mental-fazem-criticas-ao-setembro-amarelo