No imaginário do homem médio brasileiro, “sexólogo” ainda costuma soar como uma mistura de “professor de sexo” com “especialista em truques”, alguém que ensinaria posições, aumentaria desempenho e resolveria tudo com uma fórmula rápida. Essa imagem não nasce do nada. Ela é reforçada por anos de cultura de performance, pornografia como pseudoeducação, conversas masculinas que tratam sexo como competição e uma internet que recompensa promessas simples para problemas complexos. Só que, na prática clínica, sexualidade não se comporta como um tutorial.
O Dia do Sexólogo, comemorado no Brasil em 15 de dezembro, é uma boa oportunidade para organizar essa confusão com calma. Não para romantizar a profissão nem transformar sexualidade em espetáculo, mas para dizer com clareza: sexologia é cuidado. E cuidado não combina com atalhos nem com moralismo.
🛏️ Sexualidade como dimensão de saúde: mais do que “o que acontece na cama”
Sexualidade não é apenas “o que acontece na cama”. Ela inclui desejo, excitação, orgasmo, dor, prazer, intimidade, comunicação, limites, consentimento, autoestima, contexto de vida e história de aprendizagem. Em outras palavras: sexualidade é comportamento em contexto. E, como todo comportamento humano, ela é influenciada por variáveis biológicas, pela trajetória individual e por contingências sociais e culturais.
Quando se olha por uma lente mais funcional (no sentido da Análise do Comportamento), fica mais fácil entender por que a sexualidade é tão sensível. Existe um nível filogenético, ligado ao corpo e à biologia: hormônios, sistema nervoso, saúde vascular, sono, medicações, dor. Existe um nível ontogenético, ligado à história de vida: o que foi reforçado, punido, proibido, silenciado, incentivado, ensinado. E existe um nível cultural, ligado às regras sociais: o que “pode” e “não pode”, o que é “coisa de homem”, o que gera aprovação, o que gera vergonha. Isso não é teoria para enfeitar discurso: é o mapa do terreno onde a vida sexual acontece.
🤡 O que o sexólogo faz: cuidado clínico, não entretenimento
É nesse território que o trabalho do sexólogo se organiza. De modo geral, sexólogo é o profissional que atua clinicamente com questões relacionadas à sexualidade, de forma ética e baseada em conhecimento técnico. O centro do trabalho não é ensinar “técnicas secretas”, e sim avaliar, compreender e conduzir intervenções que façam sentido para aquela pessoa ou para aquele casal, com objetivos claros e realistas.
Na prática, isso significa que o atendimento começa com acolhimento e avaliação cuidadosa. Uma anamnese sexual bem feita não é curiosidade; é método. Ela investiga história, rotina, contexto relacional, saúde geral, uso de medicamentos, hábitos, crenças, expectativas, experiências marcantes, educação sexual recebida e o que aquela pessoa chama de “problema”. Porque muitas vezes o “problema” não é um evento isolado, e sim um padrão: um conjunto de antecedentes e consequências que mantém aquele funcionamento vivo.
📋 Como funciona o processo: psicoeducação, intervenção e acompanhamento
Depois dessa etapa, o sexólogo ajuda a organizar hipóteses e um plano. Isso pode incluir psicoeducação, que tem a função de explicar, com linguagem clara, como a resposta sexual funciona, como desejo pode variar, como ansiedade interfere, como o corpo responde a estresse, como o contexto pesa. Psicoeducação não é palestra: é retirar a sexualidade do território da superstição e devolvê-la ao campo do compreensível. O que é compreensível costuma ser menos assustador, e o que é menos assustador costuma ser mais tratável.
As intervenções, por sua vez, variam conforme a formação e o escopo do profissional, mas têm um princípio em comum: elas não são um “faça isso e pronto”. Em sexualidade, o que parece simples no papel frequentemente envolve vergonha, medo, autocobrança, regras internalizadas, histórias de punição, expectativas irreais e dificuldade de comunicação. Por isso, o processo clínico pode envolver treino de habilidades, ajustes graduais, construção de repertório, manejo de ansiedade, mudanças de contexto e trabalho com comunicação sexual. Quando o caso é de casal, frequentemente o foco inclui alinhamento de expectativas, negociação de ritmos, construção de intimidade e redução de pressões que transformam sexo em obrigação.
Aqui vale uma diferenciação importante: sexologia séria não se confunde com conteúdo de entretenimento sexual. A internet pode dar ideias, mas não dá avaliação. Pode dar “dicas”, mas não dá compreensão de função. Pode oferecer narrativas prontas, mas não conhece sua história. O trabalho clínico existe justamente porque sexualidade não é um problema de informação apenas; muitas vezes é um problema de contexto, de aprendizagem e de repertório.
🚑 Limites éticos, o que não é sexologia e quando integrar outras áreas
E tão importante quanto dizer o que o sexólogo faz é dizer o que ele não faz, não por implicância, mas por ética. Sexólogo não é fiscal moral, não é juiz e não deveria transformar o atendimento em palco de constrangimento. Sexualidade é uma área onde vergonha e culpa já fazem estrago suficiente; a função clínica é aumentar compreensão e cuidado, não punir o sujeito por existir do jeito que existe.
Também não faz parte do trabalho sério prometer “performance perfeita”. Essa promessa, aliás, é um ótimo exemplo de como a cultura masculina pode adoecer a sexualidade: quando sexo vira teste, o corpo começa a responder como se estivesse sob ameaça. O resultado costuma ser mais vigilância, mais comparação, mais medo, mais rigidez e menos prazer, menos presença, menos intimidade. Um bom cuidado não alimenta esse ciclo.
Além disso, a sexualidade raramente é “só psicológica” ou “só orgânica”. Por isso, uma atuação responsável reconhece interfaces e encaminhamentos. Em muitos casos, faz sentido articular com urologista, ginecologista, endocrinologista, psiquiatra, fisioterapia pélvica e outros profissionais. Isso não diminui ninguém; aumenta precisão. Sexualidade é uma dimensão humana complexa demais para caber em um único olhar quando há sinais de fatores médicos, hormonais, dor pélvica, efeitos de medicação ou condições clínicas associadas.
Essa diferença entre profissionais também ajuda a reduzir ruído. Urologista e ginecologista olham com profundidade para o corpo e suas condições. Fisioterapia pélvica trabalha com musculatura, dor, assoalho pélvico e função. Terapia de casal trabalha com dinâmica relacional e padrões de comunicação do vínculo. Educação sexual foca em informação e formação. O sexólogo, quando atua clinicamente, organiza a sexualidade como campo de cuidado, avaliando variáveis, propondo intervenções e, quando necessário, integrando com outras áreas. Cada atuação tem valor; o problema é confundir uma com a outra e esperar dela o que ela não promete.
🚑 Conclusão
No fundo, o que o Dia do Sexólogo pode lembrar é simples e difícil ao mesmo tempo: sexualidade é parte da saúde. Não é um enfeite da vida, nem uma prova de masculinidade, nem um assunto “menor” que se resolve com vergonha e silêncio. E cuidado de verdade costuma ter três marcas: clareza, ética e processo.
Se você guardar só uma ideia, que seja esta: sexólogo não ensina truques, mas organiza, orienta e trata a sexualidade com ciência, ética e respeito. A pergunta que fica, sem moralismo e sem dramatização, é objetiva: você tem tratado sua sexualidade como um palco de desempenho… ou como uma dimensão da sua saúde que merece cuidado?
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👤 Quem foi Kinsey, o “pai da sexologia moderna”
Alfred Charles Kinsey foi um biólogo e pesquisador norte‑americano, nascido em 1894 e falecido em 1956, que se tornou uma figura central no estudo científico da sexualidade humana. Ele ficou especialmente conhecido pelos grandes levantamentos empíricos sobre o comportamento sexual de homens e mulheres nos Estados Unidos.
Kinsey começou a carreira como entomólogo (especialista em insetos), mas na década de 1930 passou a dedicar-se ao estudo da sexualidade humana na Universidade de Indiana. A partir daí, estruturou um programa sistemático de entrevistas com milhares de pessoas, registrando em detalhe práticas e experiências sexuais ao longo da vida.
Ele é chamado de “pai da sexologia moderna” porque seus dois livros, sobre comportamento sexual masculino (1948) e feminino (1953), romperam tabus ao tratar sexo como objeto de pesquisa científica, com métodos quantitativos e estatísticos. Essas obras introduziram conceitos como a escala de Kinsey de orientação sexual e ajudaram a deslocar a ideia de “normal” e “desviante” para uma visão de sexualidade como um continuum, influenciando fortemente a psicologia, a medicina e o debate público sobre sexualidade.
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📚 Referências e sugestões de leitura:
OLIVEIRA, Melissa Barbieri; LAGO, Mara Coelho de Souza. Sexualidades, Estatísticas e Normalidades - A persona numerabilis nos relatórios Kinsey, Masters & Johnson e Hite. Cadernos Pagu, [S.L.], n. 45, p. 593-600, dez. 2015. FapUNIFESP (SciELO). http://dx.doi.org/10.1590/18094449201500450593.
BROWN, Theodore M.; FEE, Elizabeth. Alfred C. Kinsey: a pioneer of sex research. American Journal Of Public Health, [S.L.], v. 93, n. 6, p. 896-897, jun. 2003. American Public Health Association. http://dx.doi.org/10.2105/ajph.93.6.896.
CARVALHO, Maria Eulina Pessoa de; DE ALMEIDA, Edson Leandro. EDUCAÇÃO PARA A SEXUALIDADE A PARTIR DA BIOLOGIA:: VAMOS FALAR DE KINSEY?. Diversidade e Educação, [S. l.], v. 9, n. 1, p. 93–123, 2021. DOI: 10.14295/de.v9i1.13052. Disponível em: https://periodicos.furg.br/divedu/article/view/13052. Acesso em: 16 dez. 2025.
CORRêA, Sonia; PARKER, Richard (org.). Sexualidade e política na América Latina: histórias, interseções e paradoxos. Rio de Janeiro: Abia, 2011. 383 p. (Dialógos sobre sexualidade e geopolítica). Disponível em: https://sxpolitics.org/ptbr/wp-content/uploads/2011/07/dialogo-la_total.pdf#page=175. Acesso em: 14 dez. 2025.
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