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Especial Setembro Amarelo

Sobreviventes enlutados por suicídio: quando a vida continua, mas não do mesmo jeito

Quando alguém parte por suicídio, não é apenas uma vida que se encerra: múltiplas outras são atravessadas pela ausência e precisam se reorganizar em meio à dor.

Por Luiz Filipe Antonio, 12 de setembro de 2025

Quantas vidas cabem em uma morte? Quando ocorre um suicídio, não é apenas a vida de quem se matou que se interrompe: pais, irmãos, amigos, colegas e vizinhos passam a responder a novas condições do ambiente — uma rede inteira de relações é atravessada por essa ausência. As práticas sociais de convívio mudam, o acesso a fontes de apoio se altera e novas exigências de comportamento surgem.

É importante esclarecer que o termo “sobrevivente” aparece em dois sentidos diferentes. De um lado, estão os sobreviventes de tentativa, pessoas que passaram pelo ato de quase se matar e permanecem vivas. De outro, estão os sobreviventes enlutados, aqueles que perderam alguém por suicídio e precisam reorganizar sua vida a partir dessa perda. Neste texto, o foco recai sobre esse segundo grupo, para compreender como vivem após a ruptura causada pelo suicídio e como variáveis ambientais, históricas e culturais influenciam esse processo.

Quem são os sobreviventes?

Em primeiro lugar, é necessário delimitar de quem estamos falando. O psicólogo Edwin Shneidman cunhou o termo survivor para designar aqueles que experienciam a morte por suicídio de alguém próximo e são afetados de modo profundo. No Brasil, o conceito foi traduzido como “sobrevivente enlutado” para diferenciar de quem sobrevive a uma tentativa própria (Dantas, Bredemeier & Amorim, 2022). Como lembram os autores, “conceitualmente, o termo em inglês survivor diz respeito a todos aqueles sujeitos que experienciam a morte por suicídio de alguém próximo e são negativamente afetados por ela”. Essa definição já anuncia a ambiguidade: viver, mas viver atravessado pela ausência.  No caso dos homens, essa ambiguidade é atravessada por fatores culturais que reforçam a ideia de “manter a firmeza” e de não demonstrar dor, o que frequentemente leva a um luto silencioso e invisível. Essa dificuldade de pedir ajuda ou compartilhar fragilidades já foi discutida em outra publicação sobre saúde psicológica masculina, onde destaquei como a pressão cultural para parecer autossuficiente pode se tornar um agravante no manejo do sofrimento

A partir daí, percebe-se como o fenômeno se manifesta no cotidiano. O luto por suicídio costuma ser acompanhado por sentimentos de culpa (ações de autocensura, como dizer a si “eu poderia ter feito algo”); vergonha (evitando contatos sociais ou escondendo informações); e isolamento (afastamento de contextos de interação). O Guia de Orientações para Abordagem ao Luto por Suicídio destaca que “é muito frequente a família se sentir culpada, pensando que poderia ter evitado a morte do familiar. Sentimentos muito presentes são culpa, vergonha, medo, raiva, desorientação e choque” (Comitê Permanente de Prevenção do Suicídio da SES-DF, 2023). O silêncio, nesse contexto, não é apenas falta de palavras: é uma barreira que afasta os enlutados da rede de apoio que poderiam ter.

O impacto desse fenômeno é amplo porque envolve diferentes situações em que certas ações são estimuladas e outras são desencorajadas, como pedir ajuda ou mesmo vivenciar esse luto. Como observam Dantas et al. (2022), “o luto por suicídio apresenta especificidades por relacionar-se a uma morte violenta e estigmatizada. Nesta perspectiva, existem impactos causados na vida dos sobreviventes enlutados que passam por questões sociais, econômicas, físicas e emocionais”. Trata-se, portanto, de um fenômeno que atravessa fronteiras entre indivíduo e sociedade, subjetividade e cultura.

Por que é importante?

Por esse motivo, cuidar de sobreviventes não é apenas uma questão ética, mas uma estratégia de saúde pública. Como destacam Dantas et al. (2022), “não se pode negligenciar a saúde e o percurso de vida dos sobreviventes enlutados”. Reconhecer sua vulnerabilidade significa abrir espaço para ações de posvenção — termo criado por Shneidman para designar intervenções realizadas após um suicídio visando apoiar enlutados e prevenir novos casos.

Shneidman, ao cunhar o termo posvenção nos anos 1970, descreveu esse conjunto de ações como uma forma de “prevenção retroativa”, isto é, estratégias que atuam após um suicídio para reduzir o sofrimento dos enlutados e, ao mesmo tempo, prevenir novos casos. Para ele, a posvenção deveria começar com a oferta de assistência imediata, ajudando a lidar com questões práticas e burocráticas, como contato com autoridades, hospitais ou funerárias, e seguir com a criação de espaços de escuta e acolhimento em que familiares e amigos pudessem falar da perda sem medo de julgamentos. Outra dimensão essencial era a atenção ao risco aumentado entre sobreviventes, já que pais, irmãos ou pessoas que encontraram o corpo podiam apresentar maior vulnerabilidade ao suicídio. Nesse sentido, era necessário acompanhar de perto esses grupos, desencorajando ideações e planejamentos e reforçando repertórios de enfrentamento mais seguros. Shneidman também destacava a importância de orientar tanto profissionais quanto familiares para poderem responder de modo ético e não estigmatizante, além de favorecer a reconstrução de sentido por meio de práticas comunitárias, como grupos de apoio, memoriais coletivos ou iniciativas de prevenção. Dessa forma, a posvenção se consolidava não apenas como cuidado terapêutico individual, mas como intervenção ampla, que reorganiza ambientes sociais e culturais, abrindo caminho para que a dor, ao invés de se repetir em novos suicídios, possa ser transformada em vínculo, partilha e reconstrução.

No entanto, esse cuidado enfrenta dilemas. Muitos sobreviventes não sabem aonde recorrer, e até os serviços de saúde reproduzem, por vezes, o mesmo estigma que deveria ser combatido. Ruckert, Frizzo e Rigoli (2019) apontam que “há uma dificuldade de os sobreviventes terem acesso a serviços que auxiliam no processo do luto complicado, seja por não conhecerem lugares que oferecem essas atividades, seja por não quererem buscar auxílio ou, ainda, por não saberem o significado da palavra posvenção”. O paradoxo é evidente: no momento em que mais precisam, encontram portas fechadas ou desconhecem que existe ajuda disponível.

Ainda assim, não se deve reduzir essa vivência apenas a seus efeitos negativos. É verdade que o luto por suicídio pode gerar adoecimento psíquico e físico, como esquiva social prolongada ou aumento do consumo de álcool, além de elevar o risco de novas tentativas na família. Mas também há potencial de ressignificação. 

Segundo os mesmos autores, “o luto decorrente da morte por suicídio é caracterizado como luto complicado, uma vez que, além de serem mortes repentinas, também são violentas, podendo criar distintos problemas de saúde física e mental para os sobreviventes” (Ruckert et al., 2019). A dor é devastadora — mas pode, em alguns casos, impulsionar vínculos mais fortes, engajamento comunitário e ativismo em prevenção. Passam a emitir comportamentos de ajuda mútua e reorganização de vínculos familiares. 

Em comparação com outros tipos de perda, esse luto é singular. Como lembram Dantas et al. (2022), “as pessoas enlutadas por suicídio podem experimentar mais choque ou traumas nessa experiência do que em outras categorias de morte, devido à natureza inesperada, violenta e sem justificativas imediatas do ato suicida”. Enquanto uma morte por doença costuma trazer explicações e rituais socialmente aceitos, o suicídio deixa perguntas sem resposta e um peso de julgamento coletivo que torna a experiência qualitativamente distinta. 

Conclusão 

Durante séculos, o suicídio foi controlado por práticas culturais de punição moral. Apenas recentemente, práticas sociais passaram a reforçar o debate público. No Brasil, o Setembro Amarelo exemplifica esse deslocamento: “através da campanha (...) criada em 2015, o Brasil tem debatido a temática do suicídio de maneira mais ampliada” (Dantas et al., 2022). Ainda há críticas à superficialidade de algumas ações, mas o avanço é inegável: sobreviventes começam a ocupar espaços de fala e transformar dor em militância.

Por fim, é necessário destacar que o conhecimento sobre posvenção continua em construção. As pesquisas mostram que “as ações e intervenções de posvenção são desenvolvidas, após um suicídio, no intuito de minimizar os resultados negativos na saúde e facilitar a recuperação entre os enlutados. No campo da saúde pública, a aplicação da posvenção deve ir além da psicoterapia e não focar apenas na progressão individual” (Dantas et al., 2022). Essa ampliação do olhar é urgente, pois não se trata de um problema marginal, mas de um desafio coletivo que demanda políticas estruturadas.

Dessa maneira, falar em sobreviventes enlutados por suicídio é reconhecer que uma morte pode continuar reverberando em muitas vidas. Cada ausência deixa um rastro de perguntas, sentimentos e rupturas que, se não forem acolhidos, podem se tornar novas tragédias. A tese defendida aqui é clara: o cuidado com sobreviventes não é apenas uma questão individual, mas uma responsabilidade social e de saúde pública.

Se a sociedade, as instituições e as redes de apoio assumirem esse compromisso, será possível transformar parte da dor em força de reconstrução. E talvez a maior provocação seja esta: em um mundo que ainda insiste em silenciar a vulnerabilidade, estamos dispostos a ouvir aqueles que sobrevivem e a aprender com o que eles têm a dizer?

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📞 Aqui estão contatos de apoio confiáveis e acessíveis para pessoas em situação de crise ou com tendência suicida.


  • CVV – Centro de Valorização da Vida

Telefone: 188 (ligação gratuita, 24h por dia)

Chat online: www.cvv.org.br

Atendimento sigiloso e voluntário para quem precisa conversar.

  • SAMU – Serviço de Atendimento Móvel de Urgência

    • Telefone: 192 (emergência médica)

    • Aciona socorro imediato em risco iminente de vida.

  • Corpo de Bombeiros

    • Telefone: 193

    • Também atende situações de urgência e resgate.

  • Unidades de Pronto Atendimento (UPA) ou hospitais gerais

    • Atendimento presencial em crises agudas de saúde mental.


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Referências e sugestões de leitura:

Berman, A. L. (2011). Estimating the population of survivors of suicide: Seeking an evidence base. Suicide and Life-Threatening Behavior, 41(1), 110–116. https://doi.org/10.1111/j.1943-278X.2010.00009.x


Dantas, E. S. O., Bredemeier, J., & Amorim, K. P. C. (2022). Sobreviventes enlutados por suicídio e as possibilidades para posvenção no contexto da saúde pública brasileira. Saúde e Sociedade, 31(3), e210496. https://doi.org/10.1590/S0104-12902022210496pt


Jamison, K. R. (1999). Night falls fast: Understanding suicide. Alfred A. Knopf.

Jordan, J. R., & McIntosh, J. L. (Eds.). (2011). Grief after suicide: Understanding the consequences and caring for the survivors. Routledge.


Ministério da Saúde. (2024a). Prevenção de suicídio. (Série saúde psicológica e Atenção Psicossocial em Desastres, Vol. 7, 1ª ed.). Ministério da Saúde. https://vigiar-esp.saude.gov.br/local/pages/?id=9


Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente. (2024b, 6 de fevereiro). Panorama dos suicídios e lesões autoprovocadas no Brasil de 2010 a 2021 (Boletim Epidemiológico, Vol. 55, nº 4). Ministério da Saúde. https://www.gov.br/saude/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/boletins/epidemiologicos/edicoes/2024/boletim-epidemiologico-volume-55-no-04.pdf


Moore, R. A. Violência e gênero: vulnerabilidade masculina. Dissertação de Mestrado. Universidade de Brasília, 2015.


Organização Mundial da Saúde, & Organização Pan-Americana da Saúde. (2024b). Viver a vida: Guia de implementação para a prevenção do suicídio nos países. OPAS/OMS.


Ruckert, M. L. T., Frizzo, R. P., & Rigoli, M. M. (2019). Suicídio: a importância de novos estudos de posvenção no Brasil. Revista Brasileira de Terapias Cognitivas, 15(2), 85–91. https://doi.org/10.5935/1808-5687.20190013

Shneidman, E. S. (1993). Suicide as psychache: A clinical approach to self-destructive behavior. Rowman & Littlefield.

Shneidman, E. S. (1996). The suicidal mind. Oxford University Press.


Schuina, L. (2024, 12 de setembro). Especialistas em saúde psicológica fazem críticas ao Setembro Amarelo. Século Diário. https://www.seculodiario.com.br/saude/especialistas-em-saude-mental-fazem-criticas-ao-setembro-amarelo

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